Agência retrocede na linha do tempo, ameaça reduzir avanços e amplia os problemas no direito de interconexão e provimento de acesso à internet.
Um verdadeiro retrocesso, que traz de volta o clima de insegurança jurídica enfrentado pelas redes comunitárias no país, após anos de debate sobre a relevância da internet como um direito humano fundamental. Foi assim que o Instituto Bem-Estar Brasil (IBEBrasil) classificou a proposta final apresentada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para revogar a Resolução 617/2013, que regulamenta o Serviço Limitado Privado (SLP) – licença garantindo o funcionamento tanto das redes comunitárias quanto das cidades digitais.
A articulação sobre políticas públicas e sociais de acesso à internet teve início no ano de 2010, quando o IBEBrasil abriu o debate com o Ministério das Comunicações para regulamentar as redes comunitárias e cidades digitais. Em 2013, veio a primeira vitória, consolidando na resolução 617/2013 a regulamentação concedendo o direito de entidades sem fins lucrativos e entes públicos proverem o sinal de internet.
Em 2020, foi aberta uma tomada de subsídio pela Anatel (Consulta Pública 65/2020) para dar início à construção da resolução para simplificar os serviços de telecomunicações, deixando os processos menos burocráticos. A sociedade civil participou incisivamente para incluir as propostas históricas de redes comunitárias e das políticas de inclusão digital.
Em 2022, como ponto de partida, foi lançada a Consulta Pública 41, que teve como objetivo propor um texto com base na CP 65/2020 para simplificar a regulamentação do setor de telecomunicações no país, criando o novo Regulamento Geral dos Serviços de Telecomunicações (RGST).
Durante a consulta, entidades da sociedade civil que defendem a democratização da internet propuseram que os entes públicos e as entidades sem fins lucrativos pudessem se interconectar às redes de alta capacidade. Tal iniciativa permitiria que a internet chegasse a milhares de comunidades do país onde os provedores comerciais não conseguem atuar por falta de viabilidade financeira ou onde a população de baixo poder aquisitivo não pode pagar por um pacote comercial.
Texto final expõe omissão
Mas o texto final apresentado pela Anatel através da CP 41/2022 caminhou no sentido contrário, expondo ainda mais a omissão da agência e do Ministério das Comunicações no que diz respeito à política de universalização de acesso à internet no Brasil. No artigo 67 da referida consulta, a Anatel propôs proibir a interconexão entre redes de suporte a serviço de interesse restrito com viés social e redes de suporte de serviço de interesse coletivo.
No âmbito regulatório, interconexão é a possibilidade de um prestador de serviços de interesse coletivo (provedor comercial autorizado) se conectar com outra rede de internet de alta capacidade através de uma infraestrutura e um modelo com maior qualidade e velocidade – geralmente via rede de fibra óptica. No Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU V), já está prevista, inclusive, a obrigação de as grandes operadoras atenderem preferencialmente as políticas públicas com preços e condições diferenciadas, apesar de o Ministério das Comunicações ainda ter vedado as redes comunitárias, ao não reconhecê-las como parte das diretrizes da política de inclusão digital do ministério.
Na CP 41/2022, a Anatel também propôs suprimir o artigo 18 da resolução 617/2013, que, em seu parágrafo único, estabelece que “as redes de suporte ao SLP de órgãos ou entidades da Administração Pública direta ou indireta do Governo Federal, Estadual, Municipal ou do Distrito Federal, assim como de entidades sem fins lucrativos, poderão disponibilizar conexão à Internet”.
Confusão sobre o direito de interconexão
Presidente do IBEBrasil, Marcelo Saldanha lembra que os debates e reuniões com a Anatel e o Ministério das Comunicações foram recorrentes nos dois últimos anos. Em sua avaliação, ficou claro durante as conversas com as áreas técnicas da Anatel que havia uma confusão no entendimento entre as naturezas das entidades sem fins lucrativos e dos atores comerciais, que em nada se confundem.
Saldanha chama a atenção para as diferenças entre as licenças comerciais (SCM) e as licenças privadas (SLP). A característica mais relevante é que a SCM tem como finalidade a exploração comercial por empresas de telecomunicações com fins lucrativos e construção de patrimônio privado, enquanto no SLP todos os recursos são públicos ou revertidos integralmente para a manutenção e expansão dos serviços de acesso à internet para a população, sem finalidade lucrativa e com destinação e posse do patrimônio em prol da coletividade.
Ele pondera que a preocupação da área técnica levaria a uma revolução social e humanitária, em acreditar que as empresas deixariam de explorar os serviços para obtenção de lucro e construção de patrimônio privado para virarem entidades filantrópicas e sociais.
– Através da audiência pública do tema de Simplificação Regulatória, conseguimos identificar que continua existindo essa confusão sobre o direito de interconexão. Tanto nas falas do Sr. Felipe Lima, da Superintendência de Planejamento e Regulamentação da Anatel, quanto na fala dos representantes das grandes operadoras de telecomunicações, foram ressaltadas preocupações quanto ao direito de interconexão e provimento de acesso à internet pela licença do SLP. Não queremos favorecer o uso irregular de provimento de acesso; estamos falando em iniciativas que não se confundem com serviços comerciais, e que muito menos competem com elas, porque suas naturezas são diferentes. O direito à interconexão é uma demanda antiga, mas que não consegue caminhar por conta desse entendimento equivocado da Anatel – observa o presidente do IBEBrasil.
As próximas fases serão de análise das propostas encaminhadas pelas áreas técnicas da Anatel e a escolha de um conselheiro como relator. Será preciso incidência e participação social para reverter o retrocesso e garantir que cidades digitais e redes comunitárias continuem sendo atores legítimos na busca da redução das desigualdades sociais e regionais em relação à inclusão das populações mais vulneráveis na sociedade da informação.
Links de consulta
Link da CP 41/2022: https://apps.anatel.gov.br/ParticipaAnatel/VisualizarTextoConsulta.aspx?TelaDeOrigem=2&ConsultaId=10021
Link da Audiência Pública
Links de Legislação Relevante:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9472.htm
Art. 148. É livre a interconexão entre redes de suporte à prestação de serviços de telecomunicações no regime privado, observada a regulamentação.
Outros link para consulta
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9612.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm